terça-feira, fevereiro 28, 2006


Soneto Para Um Rapaz Só

Com um carvão escreve nas paredes
palavras gordurosas, insensatas.
Vingança de quem tem moinhos verdes
no corpo gotejante de cascata.

Promessa de homem igualado às redes
que amolecem nas grutas afogadas,
menino afronta, enrolado às sedes
que molestam as fontes mutiladas.

É a raiz dum grito na cidade
onde ninguém pergunta se é criança,
se tem fome, ou tem frio, ou tem idade
para aceitar o círculo das penas.

Pouco lhe resta. Nem o sol alcança.
E agride com palavras, das obscenas.

sexta-feira, fevereiro 24, 2006


Na tristeza profunda dos meus dias, eu penso em ti,
naquilo que nós já fomos, no que poderíamos ser...

terça-feira, fevereiro 21, 2006


Se eu fosse um porquinho da Índia gostaria de...

1-Estar com outros porquinhos..
2-Ter comida, ter sempre água fresca e algo duro para ir roendo.
3-Um parque grande para viver com um sítio quentinho para dormir.
4-Ter uma casinha sempre limpinha.
5-Ser escovado todos os dias para estar sempre bonito.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006


"Há dias em que tudo o que vejo me parece pleno de significados: mensagens que me seria difícil comunicar a outros, definir, traduzir por palavras, mas que precisamente por isso se me apresentam como decisivas. São anúncios ou presságios que me dizem respeito a mim mesmo e ao mundo ao mesmo tempo: e de mim, não os acontecimentos exteriores da existência mas o que acontece cá dentro, no fundo; e do mundo não um facto singular qualquer mas o modo de ser geral de tudo. Compreendem pois a minha dificuldade em falar disto, a não ser por alusões."

Italo Calvino in Se Numa Noite de Inverno Um Viajante

Tu

Tu és um saco de pulgas.
Tu nunca tiveste um minuto de trabalho.
Tu lambes a cara de desconhecidos
com a única intenção de me envergonhar.

Por vezes, tresandas como uma manta
velha, mal cheirosa e húmida.

Não és apenas daltónico,
tu nem sequer sabes distinguir
uma carpete de um sofá.

Tu finges que achas a palavra
"não" incompreensível.
Tu insistes em partilhar o teu desafinado
latido com a vizinhança inteira.

Por alguma razão, tens medo de estátuas.
As estátuas põem-te louco.

Tu não tens vergonha nenhuma.

Tu és a coisa mais preguiçosa, suja,
teimosa e presunçosa que conheci
em toda a minha vida.

Mas eu acho que és perfeito.


"Somos pelos cães"

quarta-feira, fevereiro 15, 2006


A Nuvem e o Caracol

Era uma vez uma nuvem. Era uma vez um caracol. A nuvem andava lá no alto, a espreguiçar-se muito vagarosa, muito preguiçosa. O caracol andava cá por baixo, a correr muito devagarinho, muito devagarinho, porque não sabia correr mais depressa. Andava à sua vida o caracol.
Lá no alto, a nuvem, porque não tinha nada que fazer, bocejava:
- Ah, que dia pasmado este!
Cá em baixo, o caracol, que tinha imensos quefazeres, murmurava:
- Ah, que dia tão atarefado este!
Mas, afinal, era apenas um lindo dia, um lindo dia de sol.
Para se entreter, a nuvem começou a brincar ao faz-de-conta.
Como não havia mais nuvens, tinha de brincar sozinha.
- Faz de conta que sou um cavalo - e um cavalo-nuvem desenhava-se no céu.
- Agora, faz de conta que sou um palhaço - e a cara de um palhaço, feito de nuvem, recortava-se no azul do céu.
- Agora sou uma casa - e uma casa-nuvem aparecia no céu.
Entretinha-se assim.
Mas, quando, a certa altura, se alongou e espreguiçou mais e mais, a fazer de conta que era um comboio de mercadorias, a nuvem tapou o sol. O dia escureceu.
Cá em baixo, o caracol, que andava à sua vida, suspirou, aborrecido:
- Esta nuvem só faz disparates. É o que sucede a quem não tem nada que fazer.
Parece que ela, a nuvem, lá em cima, o ouviu, porque, passado tempo, escureceu de triste que estava e começou a choramingar sobre a terra. Foram umas gotinhas poucas, uns chuviscos - que ela também era pequenina - mas bastaram para pôr a reluzir as folhas e as ervas por onde o caracol andava à sua vida. Quando se foi a chuva, e o sol voltou a aparecer, o caracol, que entretanto se abrigara na sua casa, deitou os pauzinhos para fora e disse, muito satisfeito:
- Assim, sim!
Virou então a cabeça para o céu, para agradecer à nuvem, mas já ela tinha desaparecido.

António Torrado


terça-feira, fevereiro 14, 2006








O Amor!
A palavra

Pomo gerado entre a pedra e a abelha
do pólen do silêncio.

Um súbito desejo te desperta
luz viva em fibras de coragem.

Ardes em labaredas sobre a mesa
onde desperto te incendeio.

Forma exacta cintilas pululando
na memória. Ó ar! Ó espiga!

E passáro e flecha sobre mim revoas.
Que mão resiste? Que bosque?

Como um cão caminhas no meu rosto
e a mão segue os teus passos, verdadeira.

Em cachos perduras na memória
de todas as coisas vivas. Silenciosa.

Pétala de luz, interminável rosa
surges nos meus dedos mágica de sons.

Abre-te, flor de pedra, na doçura
deste néctar. Diligente abelha.

Zumbe, ó infinita, sobre a página.
O teu segredo é a chave do universo.

Joaquim Pessoa, Poemas

segunda-feira, fevereiro 13, 2006


A minha irmã nasceu há quatro dias. É muito feia, tem a cara toda às rugas e eu ainda não estou muito certa se gosto dela ou não. Pelo menos penso que nunca vou gostar dela como gosto da Rita, que mora na minha rua e é a minha melhor amiga. Como diz a avó Elisa, a família aumentou. Só que eu gostava que a gente pudesse escolher a nossa família tal qual escolhe os amigos. Porque assim eu havia de gostar da família inteira. E nela estariam a mãe, o pai, a avó, a Rita, o Pedro, o Sr.João da tabacaria, que às vezes me dá mais uma carteira de cromos do que aquelas para que chega o dinheiro que levo.
Mas não a tia Magda, que só tem boca para palavras azedas, e só gosta de flores caras com nomes complicados, como os antúrios e as estrelícias, que a minha mãe lhe compra no dia de anos. Quando estou triste, gosto de ter flores ao pé de mim. Mas não é preciso que cheirem ou que sejam daquelas de pés muito altos a dormir na montra das floristas. Só é preciso que estejam ao pé de mim. Que eu olhe para elas e sinta que estou tão acompanhada como se elas fossem pessoas. Sinto que há flores que nunca me poderiam fazer companhia. Os antúrios e as estrelícias, por exemplo, a delícia da minha tia Magda.
A minha mãe conta que a primeira vez que me levou a casa da tia eu passei o tempo todo a gritar dentro da alcofa. Ainda hoje, para ser sincera, me apetece gritar quando a vejo. Já sou crescida e as pessoas diriam que me estava a portar mal. Mas a verdade é que não gosto muito da tia Magda, embora a avó Elisa esteja constantemente a meter-me pelos ouvidos dentro que a gente deve sempre gostar da nossa família.







O que eu não compreendo muito bem. No ano passado chegaram a minha casa uns primos vindos do Brasil, que eu nunca tinha visto e de quem raramente ouvia falar. Estiveram comigo uns dois ou três dias e seguiram para o norte. Não voltei a vê-los, nem penso neles. E acho que ninguém me pode obrigar a gostar deles só pelo facto de serem da minha família. Não posso gostar de pessoas que não conheço, e de quem nada sei. Mas posso gostar muito de pessoas que não são meus primos, nem tios, nem avós. De pessoas "que não me são nada", como costuma dizer a tia Magda para me arreliar. Então a Rita, por exemplo, não é nada para mim? Se eu não posso estar um dia sem a ver, sem brincar com ela, sem conversar com ela - isto não é importante? Por isso eu digo que se escolhesse a minha família havia de lá pôr também a Rita.
E as flores. As que me fazem companhia de gente, nunca os antúrios e as estrelícias.
E o Zarolho, que nada no aquário da entrada.
E a Zica, já só com um braço, um olho muito claro na cara preta, uma carapinha roída das traças, mas ainda a boneca preferida.
E a árvore da minha rua, com o rouxinol que todas as primaveras nela mora, e canta, e me faz contente nem sei porquê.
E a vizinha do prédio em frente, o dia inteiro agarrada à máquina de costura.
E o meu quarto e tudo o que dentro dele me pertence de verdade.
E também os livros. E os patins. E as minhas cadernetas de cromos coloridos.
Neste momento ainda não sei se a minha irmã que nasceu há quatro dias vai pertencer à minha família.
MARIANA

Alice Vieira, Rosa Minha Irmã Rosa

sexta-feira, fevereiro 10, 2006


Carpe diem...

Uns, com os olhos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Porque tão longe ir pôr o que está perto -
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morremos. Colhe
O dia, porque és ele.

Ricardo Reis

Semente

A partir de um corpo que eu invento
Teus cabelos livres são o lento
Sopro de vento
Dentro de nós
Afastamento de estarmos sós

A partir de um vento que eu conheço
Teu olhar aberto é o começo
Onde amanheço
Onde me espero
Onde anoiteço, mas quero

Mostrar numa canção
Meu coração de fogo e ferro
Dizer de uma assentada toda a palavra desejada

A partir do corpo da verdade
Invento meu amor minha saudade
Copo de vento
Fome de vinho
Pão de centeio e tormento
Barrado com amizade
E amassado com sofrimento
Semente de amor verdade
Por resistir ou por morrer
Mostrar numa canção
Toda a palavra por dizer
Semente lançada ao chão
Por resistir ou por morrer.


José Carlos Ary dos Santos, As Palavras das Cantigas

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

VIVER!

E tão frágil a vida,
tão efémero tudo!
(Não é verdade, amiga
olhinhos-cor-de-musgo?)

E ao mesmo tempo é forte,
forte de veleidade
de resistir à morte
quanto maior a idade.

Assim, aos trinta e sete,
fechados alguns ciclos,
a vida ainda pede
mais sentimento, vínculos.

Não tanto os que nos deram
a fúria de viver,
como esses descobertos
depois de se saber

que a vida não é outra
senão a que fazemos
(e a vida é uma só,
pois jamais voltaremos)

Partidários da vida,
melhor: do que está vivo,
digamos "não" a tudo
que tenha outro sentido.

E que melhor pretexto
(quem o saiba que o diga!)
teremos p`ra viver
senão a própria vida?

Alexandre O`Neill, No Reino da Dinamarca



terça-feira, fevereiro 07, 2006


Sete Vidas

Sete estrelas presas no giro
Da roda do céu
Sete flores dançam no pampa
No sul do Brasil

Sete mãos de fadas destrançam
Intrincados nós
Sete cruzes, sete rosários
Velando por nós

Se a vida é uma longa espera
Então ensina-me a te esperar
Se a vida é breve primavera
Deixa-nos dela beber e já

Sete rosas rubras de fogo
Amor e paixão
Sete velas luzem por nós
Na escuridão

Sete vidas tecendo o tempo
De quem anda só
Sete cartas, sete destinos
Se fundem num só

Vida longa espera
Breve primavera
Sete vidas tecendo o tempo, amor e paixão.

Marcus Viana







domingo, fevereiro 05, 2006


O Homem Vitruviano é um conceito apresentado na obra "Os dez livros da Arquitectura" e escrita pelo arquitecto romano Marcos Vitrúvio Polião, do qual o conceito herda o nome. Tal conceito é considerado cânone das proporções do corpo humano, segundo um determinado raciocínio matemático e baseando-se, em parte, na Proporção Divina. Desta forma, o homem descrito por Vitrúvio apresenta-se como um modelo ideal para o ser humano, cujas as proporções são perfeitas, segundo o ideal de beleza.
Originalmente, Vitrúvio apresentou o cânone tanto de forma textual (descrevendo cada proporção e as suas relações) quanto através de desenhos. Porém, à medida que os documentos originais perdiam-se e a obra passava a ser copiada na Idade Média, a descrição gráfica perdeu-se. Desta forma, com a redescoberta dos textos clássicos durante o Renascimento, uma série de artistas, dispuseram-se a interpretaar os textos vitruvianos com a finalidade de produzir novas reproduções gráficas. Dentre elas, a mais famosa (hoje) e difundida é de Leonardo da Vinci.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006


Deusa da Noite...

Sons da viola e cantiga subiam da casa de nhô Manuelinho.
Plantada no meio do céu, a Lua, quase cheia, muito branca, era a coisa mais bonita da noite. Se fossem duas Luas com certeza não seriam tão bonitas porque a gente teria que fazer a comparação entre elas. Quando se olha para ela é tão bom! É como se subíssemos até ela, ou ela entrasse em nós e nos tornasse mais leves. A gente esquece tudo. É ela e nada mais.
Zepa encostou a cabeça à parede, e ficou a olhar para o lado do céu onde estava a Lua. Lá dentro, os meninos dormiam embrulhados na manta. Aqui, ao seu lado, José da Cruz era uma sombra calada. Quanta coisa não estava pensando o Isé nesse momento. Ele contemplava cheio de êxtase a deusa da noite, e o farto bigode disfarçava o tremor dos seus lábios. Mas Zepa desviou o pensamento. Por um breve instante a Lua ocupou o lugar de tudo. Porquê, à medida que ela vai subindo no céu, virando mais pequena, mais pequena, amorrinhando de tamanho, enquanto vai ficando mais longe, a sua pele se torna mais branca, e mais branca a luz que ela derrama sobre os campos? Sozinha, no meio do céu tão grande, parecia ainda mais pequena que aquele espelhinho redondo que a Zepa tivera, quando ainda moça - um espelhinho que lhe cabia na palma da mão e trazia a figura duma mulher bonita no reverso.


Manuel Lopes, Os Flagelados do Vento Leste

Nos olhos do meu gato
Há imagens que esperam...

Há sonhos que não desvendo,
Amores que não entendo,
Encantos tantos,
Quantos?

Nos olhos do meu gato
Tem mistério que não tem fim,
Tem solidão,
Agonia, Poesia,
Tristeza enfim...
Nos olhos do meu gato
O sonho se separa,
A fantasia grita,
A vida se agita,
O mundo pára...

Nos olhos do meu gato
Eu vi...
Só eu vi...
Nós olhos do meu gato...
(...) Se o mágico morrer de amor, não sei se continuarei a ser terapeuta. Como não tenciono ser psiquiatra de pastilhas e electrochoques, andarei pelas escolas a contar esta história aos adolescentes, para que eles aprendam menos do preservativo e do coito interrompido e mais, muito mais, dos sentimentos e das emoções, para que os professores ensinem menos da matéria e mais da vida, para que os pais ouçam os filhos e não partam para terras distantes sem se preocuparem com eles, para que os avós sejam como a minha avó Sarah, avó do Daniel e avó do Phil. Com ela aprendi também a amar e a ouvir os outros, será que...

Daniel Sampaio in A Arte da Fuga