quarta-feira, março 12, 2008


Acordei Cedo.
Ainda antes do dia acordar.
Não havia sombra de sol ou claridade lá fora. Só um rasto de noite e uns laivos roxos na linha do olhar.
Sentei-me na cama à espera de ver o dia voltar a si. Mas estava demorado. As gotas de água
nos vidros denunciavam um amanhecer difícil.
Bocejei. Acendi a luz do candeeiro , vi as horas e deixei-me ficar ali sentada na ponta da cama,
os pés no soalho frio, os olhos na madrugada baça, e a cabeça no sono, ainda no sono.
Ouvi um ruído. Era sinal, que aos poucos todo o meu corpo ia despertando da letargia da noite.
Era o vento nas laranjeiras do quintal. As laranjas já estão maduras, se insistir, vai acabar por derrubá-las, e depois vão saber a chão, e já ninguém as vai querer comer...
Esfreguei os olhos com força.
Lá fora a noite não se resignava, e trocava humores com um sol sem vontade para disputas.
Enfiei um chinelos de lã e aventurei-me até à ombreira da janela de sacada...
Olhei o exterior em tom de desafio, e o vento lembrou-me as laranjas a cair da árvore e a
rebentar em estrondos de sumo no chão de lajes no quintal.
Chovia menos agora, e a madrugada , envergonhada cedia finalmente às suplicas de cama que
o sol lhe lançava.
Apanhei o cabelo sem pressas. Na cozinha, os motores cansados dos electrodomésticos
debatiam-se na monotonia dos sons. A chuva parecia ter parado de vez, e era agora só um
pingar das beiras dos telhados.
O café acabado de fazer encheu o ar de uma fragrância de especiarias quentes. Inspirei aquele
odor até mais não puder e bebi com demora o liquido que me embaciava o olhar e me aclarava o dia.
Lá fora, como num jogo de crianças, estava tudo montado para mais um acto. Tudo no mais
perfeito balanço, um jogo de compatibilidades e cedências que desde o berço do mundo
regia os vazios dos homens.
Liguei a televisão. As noticias eram como sempre deprimentes, ou não seriam noticias, mas
sim eventos. Desliguei, e deixei-me ficar ali, enterrada no sofá, longe da perfeição do mecanismo de bons dias e amanheceres risonhos que vinham pela janela da salinha.
Nunca tinha sentido vontade de fazer parte da engrenagem. Via-me, como sempre me via,
uma peça solta que sobrava na hora da montagem.
Apetecia-me voltar para a cama.
Olhei outra vez de soslaio. Vi duas vizinhas a falar na esquina da frente, sorriam em gestos largos, e havia crianças a comer bolos agarradas às suas pernas.
Respirei fundo e fechei os olhos. Só por uns breves segundos pude pensar em sair, levantar-me dali, romper o casulo e atrever-me a bater as asas, a não ter medo de mostrar as cores de mim.
Foi só um instante, um abrir e fechar de olhos, uma amarra cortada.
Ao fim do cais, apenas um grito breve e...volto atrás, pousar ao de leve, como se nunca tivesse
sequer voado.
Levantei-me do sofá. Deixei os chinelos de lã esquecidos no chão, e pé ante pé, tomando consciência do frio que me subia pela planta do corpo, voltei à cama.
Desliguei a luz do candeeiro da mesinha de cabeceira , deitei-me no mesmo compasso com que pautava as minhas horas, e, cansada de voar, adormeci sentada no cais.



Antes do dia Acordar Conto de Carmo Fernandes




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