Acordei Cedo.
Ainda antes do dia acordar.
Não havia sombra de sol ou claridade lá fora. Só um rasto de noite e uns laivos roxos na linha do olhar.
Sentei-me na cama à espera de ver o dia voltar a si. Mas estava demorado. As gotas de água
nos vidros denunciavam um amanhecer difícil.
Bocejei. Acendi a luz do candeeiro , vi as horas e deixei-me ficar ali sentada na ponta da cama,
os pés no soalho frio, os olhos na madrugada baça, e a cabeça no sono, ainda no sono.
Ouvi um ruído. Era sinal, que aos poucos todo o meu corpo ia despertando da letargia da noite.
Era o vento nas laranjeiras do quintal. As laranjas já estão maduras, se insistir, vai acabar por derrubá-las, e depois vão saber a chão, e já ninguém as vai querer comer...
Esfreguei os olhos com força.
Lá fora a noite não se resignava, e trocava humores com um sol sem vontade para disputas.
Enfiei um chinelos de lã e aventurei-me até à ombreira da janela de sacada...
Olhei o exterior em tom de desafio, e o vento lembrou-me as laranjas a cair da árvore e a
rebentar em estrondos de sumo no chão de lajes no quintal.
Chovia menos agora, e a madrugada , envergonhada cedia finalmente às suplicas de cama que
o sol lhe lançava.
Apanhei o cabelo sem pressas. Na cozinha, os motores cansados dos electrodomésticos
debatiam-se na monotonia dos sons. A chuva parecia ter parado de vez, e era agora só um
pingar das beiras dos telhados.
O café acabado de fazer encheu o ar de uma fragrância de especiarias quentes. Inspirei aquele
odor até mais não puder e bebi com demora o liquido que me embaciava o olhar e me aclarava o dia.
Lá fora, como num jogo de crianças, estava tudo montado para mais um acto. Tudo no mais
perfeito balanço, um jogo de compatibilidades e cedências que desde o berço do mundo
regia os vazios dos homens.
Liguei a televisão. As noticias eram como sempre deprimentes, ou não seriam noticias, mas
sim eventos. Desliguei, e deixei-me ficar ali, enterrada no sofá, longe da perfeição do mecanismo de bons dias e amanheceres risonhos que vinham pela janela da salinha.
Nunca tinha sentido vontade de fazer parte da engrenagem. Via-me, como sempre me via,
uma peça solta que sobrava na hora da montagem.
Apetecia-me voltar para a cama.
Olhei outra vez de soslaio. Vi duas vizinhas a falar na esquina da frente, sorriam em gestos largos, e havia crianças a comer bolos agarradas às suas pernas.
Respirei fundo e fechei os olhos. Só por uns breves segundos pude pensar em sair, levantar-me dali, romper o casulo e atrever-me a bater as asas, a não ter medo de mostrar as cores de mim.
Foi só um instante, um abrir e fechar de olhos, uma amarra cortada.
Ao fim do cais, apenas um grito breve e...volto atrás, pousar ao de leve, como se nunca tivesse
sequer voado.
Levantei-me do sofá. Deixei os chinelos de lã esquecidos no chão, e pé ante pé, tomando consciência do frio que me subia pela planta do corpo, voltei à cama.
Desliguei a luz do candeeiro da mesinha de cabeceira , deitei-me no mesmo compasso com que pautava as minhas horas, e, cansada de voar, adormeci sentada no cais.
Antes do dia Acordar Conto de Carmo Fernandes
Ainda antes do dia acordar.
Não havia sombra de sol ou claridade lá fora. Só um rasto de noite e uns laivos roxos na linha do olhar.
Sentei-me na cama à espera de ver o dia voltar a si. Mas estava demorado. As gotas de água
nos vidros denunciavam um amanhecer difícil.
Bocejei. Acendi a luz do candeeiro , vi as horas e deixei-me ficar ali sentada na ponta da cama,
os pés no soalho frio, os olhos na madrugada baça, e a cabeça no sono, ainda no sono.
Ouvi um ruído. Era sinal, que aos poucos todo o meu corpo ia despertando da letargia da noite.
Era o vento nas laranjeiras do quintal. As laranjas já estão maduras, se insistir, vai acabar por derrubá-las, e depois vão saber a chão, e já ninguém as vai querer comer...
Esfreguei os olhos com força.
Lá fora a noite não se resignava, e trocava humores com um sol sem vontade para disputas.
Enfiei um chinelos de lã e aventurei-me até à ombreira da janela de sacada...
Olhei o exterior em tom de desafio, e o vento lembrou-me as laranjas a cair da árvore e a
rebentar em estrondos de sumo no chão de lajes no quintal.
Chovia menos agora, e a madrugada , envergonhada cedia finalmente às suplicas de cama que
o sol lhe lançava.
Apanhei o cabelo sem pressas. Na cozinha, os motores cansados dos electrodomésticos
debatiam-se na monotonia dos sons. A chuva parecia ter parado de vez, e era agora só um
pingar das beiras dos telhados.
O café acabado de fazer encheu o ar de uma fragrância de especiarias quentes. Inspirei aquele
odor até mais não puder e bebi com demora o liquido que me embaciava o olhar e me aclarava o dia.
Lá fora, como num jogo de crianças, estava tudo montado para mais um acto. Tudo no mais
perfeito balanço, um jogo de compatibilidades e cedências que desde o berço do mundo
regia os vazios dos homens.
Liguei a televisão. As noticias eram como sempre deprimentes, ou não seriam noticias, mas
sim eventos. Desliguei, e deixei-me ficar ali, enterrada no sofá, longe da perfeição do mecanismo de bons dias e amanheceres risonhos que vinham pela janela da salinha.
Nunca tinha sentido vontade de fazer parte da engrenagem. Via-me, como sempre me via,
uma peça solta que sobrava na hora da montagem.
Apetecia-me voltar para a cama.
Olhei outra vez de soslaio. Vi duas vizinhas a falar na esquina da frente, sorriam em gestos largos, e havia crianças a comer bolos agarradas às suas pernas.
Respirei fundo e fechei os olhos. Só por uns breves segundos pude pensar em sair, levantar-me dali, romper o casulo e atrever-me a bater as asas, a não ter medo de mostrar as cores de mim.
Foi só um instante, um abrir e fechar de olhos, uma amarra cortada.
Ao fim do cais, apenas um grito breve e...volto atrás, pousar ao de leve, como se nunca tivesse
sequer voado.
Levantei-me do sofá. Deixei os chinelos de lã esquecidos no chão, e pé ante pé, tomando consciência do frio que me subia pela planta do corpo, voltei à cama.
Desliguei a luz do candeeiro da mesinha de cabeceira , deitei-me no mesmo compasso com que pautava as minhas horas, e, cansada de voar, adormeci sentada no cais.
Antes do dia Acordar Conto de Carmo Fernandes
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