segunda-feira, abril 03, 2006


A Viagem

O comboio vinha muito distraído a olhar para as lindas casas e seus jardins que iam ficando para trás, à beira da linha.
De repente, ficou tudo escuro e veio um frio e um cheiro que não eram de terra. Eram de baixo da terra, do subterrâneo comprido, comprido, onde umas luzinhas vermelhas, de longe a longe furando o negrume, corriam também para trás.
O comboio, por dentro, também tinha luz e podiam ver-se os passageiros uns aos outros, entre os quais um rapaz e uma rapariga, talvez dos seus nove e dez anos. Deviam ser irmãos: iam vestidos de igual, ambos de calças azuis e blusas aos quadrados; só se distinguia a rapariga porque tinha brincos nas orelhas. De vez em quando, ela levava a mão às orelhas, ora uma, ora à outra, a apalpar os ditos brincos. Decerto para se certificar de não os ter perdido.
- Vós ides-vos perder, tenho muito medo - dissera-lhes a avó, vezes sem conta, enquanto se preparavam para aquela viagem que os dois irmãos vinham fazer sozinhos, e para a qual dera o seu consentimento, embora muito contrariada e receosa.
- Não perdemos, avó, não se aflija - afirmava o Manuel, carinhosamente. - Sabemos a direcção de lá e sabemos o telefone do nosso merceeiro; telefonamos para cá a contar tudo, logo que virmos a mãe.
- A mãe e o menino - acrescentava a Manuela, sorrindo à lembrança desse irmãozinho que fora nascer longe de casa, longe deles.
Tinham tido uma grande aflição, toda a família menos o pai, ausente na Alemanha e que não podia regressar nessa altura. Contava vir mais tarde, quando se perfizessem os nove meses, data da criança nova chegar.
Mas ela, a criança, anunciara-se mais cedo. A mãe sentira-se mal, e o médico aconselhara que fosse imediatamente para um hospital na cidade, onde não faltava nada do que era preciso para receber uma criança sem tempo.
Os irmãos tinham ficado emocionadíssimos com aquilo tudo. Uma criança sem tempo, como diziam, seria diferente das outras?
E mal chegara a notícia do nascimento, não sossegaram enquanto não arrancaram à avó a autorização para partir.
O comboio parou por fim, depois de sair da escuridão do túnel.

Alice Gomes, Contos Risonhos

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