sexta-feira, dezembro 30, 2005

terça-feira, dezembro 27, 2005

sexta-feira, dezembro 23, 2005


A veia do Poeta

Cansado do movimento
Que percorre a linha recta
Fui ficando mais atento
Ao voo da borboleta
Fui subindo em espiral
Declarando-me estafeta
Entre o corpo do real
E a veia do poeta

Mas ela não se detecta
À vista desarmada
E o sangue que lá corre
Em torrente delicada
É a lágrima perpétua
Sai da ponta da caneta
Vai ao fim da via láctea
E cai no fundo da gaveta

Ai de quem nunca guardou
Um pouco da sua alma
Numa folha secreta
Ai de quem nunca guardou
Um pouco da sua alma
No fundo de uma gaveta
Ai de quem nunca injectou
Um pouco da sua mágoa
Na veia do poeta.

Carlos Tê/Rui Veloso

quinta-feira, dezembro 15, 2005


A Ana quer
nunca ter saído
da barriga da mãe.
Cá fora está-se bem,
mas na barriga também
era divertido.

O coração ali à mão,
os pulmões ali ao pé,
ver como a mãe é
do lado que não se vê.

O que a Ana quer ser
quando for grande e crescer
é ser outra vez pequena:
não ter nada que fazer
senão ser pequena e crescer
e de vez em quando nascer
e voltar a desnascer.

Manuel António Pina

quarta-feira, dezembro 14, 2005


Quando a mulher adormeceu
naquela noite de Natal,
o homem foi, pé ante pé,
pôr um sapato (dela, não seu)
com um embrulho de jornal
na lareirinha da chaminé.

Um casal pobre...um ano mau...
Era um pedaço de bacalhau.

Ora alta noite, pela janela,
com fome e frio, entrou um gato
que, no escuro, cheirando aquela
comida boa no sapato,
rasgou o embrulho, comeu, comeu
e, quente e farto, adormeceu.

De manhã cedo, ela acordou,
foi à cozinha e viu o gatinho
adormecido no seu sapato.
Voltando ao quarto, feliz, falou
para o seu homem: - Meu amorzinho
como soubeste que eu queria um gato?

quinta-feira, dezembro 08, 2005


Era uma vez eu que ia de manhã para o trabalho a pensar nisto e apareceu-me um hipopótamo enorme pela frente. Até me assustei.
- Desculpe incomodar - disse ele - mas ouvi dizer que anda a escrever uma história sobre bichos...
- Pois sim, mas são só histórias de bichos pequenos.
- Eu sei, mas olhe que eu ando a fazer dieta. Já emagreci 2Kg. Espere mais uns dias e vai ver se me conhece.
Eu esperei quanto pude. Nessa altura já tinha emagrecido 3Kg e 450g, mas era ainda muito grande, muito gordo.
Bom, a verdade é que eu lhe prometi que pelo menos um desenho dele viria aqui no livro e promessas são para se cumprir. Se acharem que ele é realmente muito grande, experimentem olhar para ele com uns binóculos virados ao contrário ou então pensem que há ainda bichos maiores (há, não há? Ele disse-me que, uma vez, viu outro hipopótamo ainda maior do que ele. Eu acredito! E as baleias? São enormes! Fazem com que qualquer hipopótamo se sinta insignificante).
E façam-me um favor: se o encontrarem por aí, digam de maneira que ele ouça "olha que formiga tão grande". Ele merece, é tão simpático. Ainda ontem me cedeu o lugar dele no autocarro.

Álvaro Magalhães, Histórias Pequenas de Bichos Pequenos

terça-feira, dezembro 06, 2005


Amanhã
Vai nascer um SOL maduro
por cima do meu telhado
de menino rico com tudo,

Amanhã
Vai nascer um SOL maduro
por cima de capim pobre
dos meninos pobres sem nada.

Depois,
amanhã,
(naquele dia de SOL maduro
como goiaba que o morcego quer morder)
o menino rico que mora dentro de mim
mais todos os meninos pobres
que moram dentro do mundo
vamos fazer uma roda grande
e brincar novamente
as brincadeiras de antigamente.

segunda-feira, dezembro 05, 2005


Uma professora mandou um dia aos seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Não falou assim, claro. Disse uma frase como esta: "Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira." Assim ou não assim, os alunos fizeram o trabalho. Apareceu tudo quanto é costume aparecer nestes casos: o presépio, os Reis Magos, os pastores, S.José, a Virgem e o Menino Jesus. Mal feitos, bem feitos, toscos ou apuradinhos, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da professora. Ali mesmo ela os viu e apreciou. Ia marcando "bom", "mau", "suficiente", enfim, os transes por que todos nós passamos. De repente...
Ah, mas é preciso muito cuidado com as crianças! A professora segura um desenho nas mãos, e esse desenho não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está perturbada; o desenho mostra o inevitável presépio, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
"Porquê?", pergunta a professora, em voz alta, à criança.
O rapazinho não responde. Talvez mais nervosa do que quer mostrar, a professora insiste. Há na sala os cruéis risos e murmúrios de rigor nestas situações. A criança está de pé, muito séria, um pouco trémula. E, por fim, responde: "Fiz a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu."
Daqui a um mês chegaremos à Lua. Mas quando e como chegaremos nós ao espírito de uma criança que pinta a neve preta porque a mãe lhe morreu?

José Saramago

domingo, dezembro 04, 2005


Entra.
Elegante, nada convencional.
Folheia o jornal
Alheadamente!
Notícias do dia
Que aborrecimento!
Compõe a gravata
Olha-se ao espelho
Vaidosamente!
Acaricia o bigode
Ridiculamente!
Dá um jeito ao fato
Levam-lhe um "cimbalino"
Paga com gorjeta
Superiormente!
Demora-se na página
do Desporto.
Isso sim.
Interessa, entusiasma
espicaça
A mente!
O resto, para quê
pensar?
Lixo nuclear na
nossa terra?
Deixa-me rir.
Sai desatento.
Indiferentemente!

Ana Maria Magalhães
Eu só tinha pai, que pouco a pouco se ia desinteressando de mim. O resto da gente da casa eram mulheres más e vaidosas. Umas intrusas!
O meu tempo corria como o tempo corre...ao acaso. Nada me pertencia já. Bastarda a casa, bastardos os ares respirados nela. Quantos anos teria então? Doze, treze, catorze. Até o gosto de vestir perdi porque tudo me retiravam; de vestir e de andar limpa e bem pregada. Só a imaginação me sustinha. A imaginação, digo: isto que aos jovens compensa de muita faltas, da ternura, das satisfações, dos desejos realizáveis, de pequenas e de grandes coisas.
Com essa imaginação, que nínguém me podia roubar, eu via fantásticas coisas e amava outras não menos fantásticas, inatingíveis: as estrelas, os rouxinóis, os heróis das lendas, a água...
Amava-os, perseguia-os de sonhos e de pequenas efabulações.
À noite, noites quentes e noites frias, tinha muitos delíquios sentimentais: considerava a lua uma maravilha mortal, maravilha inigualável, e deixava-me gelar de olhos fitos nela.
De dia corria as bordas da ribeira a ver pássaros, os saltinhos da água e a descobrir flores. Dessa idade me ficou a ideia da nobreza das violetas silvestres e da fragrância dos junquilhos.
A gente do campo, mulheres e homens, que me sabiam desprezada, tinham certo respeito pela minha pessoa, espreitavam-me sem me insultar.
Assim, neste viver, eu compunha, ideava histórias, coisas...

Irene Lisboa

sábado, dezembro 03, 2005


- Tu não podes ir à Lua
porque a Lua não é tua
É de todos cá da rua.
E a lua está guardada.
Sabes tu quem guarda a Lua?
É o Tomé. Que de dia faz café
e à noite guarda a rua. Ele tem
uma gazua que abre as portas da Lua...

sexta-feira, dezembro 02, 2005


-Vamos à loja do Pantaleão
encomendar um foguetão.
Pedimos ao Tomé a gazua de abrir a lua
e fica tudo espantado cá na rua!
Quanto custará o foguetão?
Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
Voando pela noite silenciosa,
A fada das crianças vem, luzindo.
Papoulas a coroam, e, cobrindo
Seu corpo todo, a tornam misteriosa.

À criança que dorme chega leve,
E, pondo-lhe na fronte a mão de neve,
Os seus cabelos de ouro acaricia -
E sonhos lindos, como ninguém teve,
A sentir a criança principia.

E todos os brinquedos se transformam
Em coisas vivas, e um cortejo formam:
Cavalos e soldados e bonecas,
Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam,
E palhaços que tocam em rabecas...

E há figuras pequenas e engraçadas
Que brincam e dão saltos e passadas...
Mas vem o dia, e, leve e graciosa,
Pé ante pé, volta a melhor das fadas
Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.

Fernando Pessoa, Poesias Inéditas